sábado, 28 de setembro de 2013

Prazer banido


Até que o sol se vá e lua apareça sorrindo pra mim,

continuarei a segui-la como o surdo ao samba,

o amante à mulher que ama

e o desejo de anjo querubim  

Imagine uma lua insatisfeita,

Um sol aborrecido,

Estrelas que não aparecem refeitas.

E tudo pelo prazer banido.

Sofro por essa perda, mas aceito a minha pena: gosto de você.

Essa condenação não me amedronta

Errarei mais para prolongá-la

e certamente renunciarei à liberdade insana

para não afastá-la.

nem deixarei de avistar do alto das minhas torres

o teu lugar habitado

onde o silêncio se rompe com o teu canto a colher flores.

Como pode tamanha elegância ser desperdiçada pela natureza morta que nos separa,

se não a mesma morbidez que sentencia os olhares de vidro, a não ver o belo que se exalta no brilho?

Sinto a tua falta e me desespero.

Olho para os lados do sol onde vejo luz e ouço gemidos de saudade,

E não são teus

[aí me desespero]

Procuro entre os escombros do passado

O que de resto me esmigalha e não vejo o que possuo

[aí me desespero]....

Tudo o que faço é pra te perder

E perco em cada passo

E como me perco nos embaraços do absurdo

Como me perco nos encantos que não são teus

Como desfaço os laços que deste

E não me domo, quando de resto, surge em sonho.

[aí me desespero]

 

 

 

 

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

*A PIPOCA



*Rubem Alves

A culinária me fascina. De vez em quando eu até me até atrevo a cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as palavras do que com as panelas.

Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-me a algo que poderia ter o nome de "culinária literária". Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas, churrascos.

Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma meditação sobre o filme A Festa de Babette que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor das minhas limitações e competências, nunca escrevi como chef. Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e teólogo — porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.

As comidas, para mim, são entidades oníricas.

Provocam a minha capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu.

A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas idéias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível.

A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela. Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido religioso? Pois tem.

Para os cristãos, religiosos são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida...). Pão e vinho devem ser bebidos juntos. Vida e alegria devem existir juntas.

Lembrei-me, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do Candomblé baiano: que a pipoca é a comida sagrada do Candomblé...

A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido.

Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto de vista de tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a idéia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos.

Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter imaginado.

Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É muito divertido ver o estouro das pipocas!

E o que é que isso tem a ver com o Candomblé? É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa — voltar a ser crianças! Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo.

Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre.

Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser.

Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão — sofrimentos cujas causas ignoramos.Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.

Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: PUF!! — e ela aparece como outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.

Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro.

"Morre e transforma-te!" — dizia Goethe.

Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas, descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar.

Meu amigo William, extraordinário professor pesquisador da Unicamp, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia, as explicações científicas não valem.

Por exemplo: em Minas "piruá" é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: "Fiquei piruá!" Mas acho que o poder metafórico dos piruás é maior.

Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem.

Ignoram o dito de Jesus: "Quem preservar a sua vida perdê-la-á".A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo a panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.

Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira...

"Nunca imaginei que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu".

O texto acima foi extraído do jornal "Correio Popular", de Campinas (SP), onde o escritor mantém coluna bissemanal.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Gozo aéreo


Como um chafariz aquele jato de prazer veio a mim
Nada se comparava ao gozo
Uma pressão jorrada do fundo do poço
E logo um grito ecoou no silêncio do quarto como Festim

A presa encurralada esvaia o seu ser
E eu, afrontando os perigos da floresta
Bradei meus sussurros em festa
Tomando-a nos braços sem me conter

Sou como a sorte que escolhe sua hora
Sinto – me na alegria do gol
E na liberdade irretocável do voo
Vou tocar as nuvens agora

Tenho tudo nas mãos e me misturo
Sou metade do início ao fim
Escorro no entre lábios o gim
Embriagado por um gesto puro

Doce como uma fruta madura
Sua cor amarelou com o por do sol
O seu gosto fisgou a minha fome com anzol
E o meu paladar alienou - se a sua seiva púrpura.


quarta-feira, 31 de outubro de 2012

*Um racha anunciado


Sou pindareense da “gema”. Minhas raízes, minha história, minha herança cultural em ruínas como o Engenho central denuncia.
Falo aqui como a cidade que respira sem dotes soberanos dos que me querem e não me possuem, mesmo com a apelação das minhas fraquezas ingênuas.
Sinto que me querem em pedaços. Minha demarcação é alvo de cobiça, mais pelo imposto e menos pelo desgosto que a população destes pedaços alardeia.
Sem escola de qualidade, sem praças, sem lazer, sem doutores, sem sonho ou promessas cumpridas.
Sou pai e irmão de um povo que quer minhas riquezas, mas eu próprio não reconheço e não me relataram as suas razões. Como saberei se é terra ou dinheiro o motivo dessa briga?
Destes meus pedaços vêm uma soma de impostos e não vejo sua verdade traduzida em políticas públicas, qualidade de vida e oportunidades.
Mas, que briga? Que ICMS ou FUNDEB? Dêem-me mais cachaça, mais pão e um pouco de circo, que tá tudo certo. Deixo tudo como está, mantenho o atraso votando no passado, levanto sua bandeira e pegarei sol na sua porta. Mas desde que não seque o meu cálice, continuarei assim esquecido e fingindo ser lembrado a cada beijo de Judas e visita obrigatória.
Que meus ouvidos sonhem e o meu coração acredite, este abuso vai acabar. Mas sinto que essa seringa me suga o sangue como aquelas caçambas sugam as veias de açúcar deixando azeda  e empoeirada a paisagem.
Eis que surge de novo a velha promessa de progresso em troca de apoio, sorrisos e abraços que viram banho em éter para limpar o suor da ingenuidade.
Como se não bastasse, minha filha pródiga reivindica seu espólio e contesta meus limites. Ninguém merece! Nem Pindaré e nem o Estado.  Tenho certeza que existem outras brigas que valem à pena serem travadas. Como a proteção do seu próprio território.
A repulsa ao extravio de açúcar de minhas jazidas que mina a cada dia o meu rio, repousa num “silêncio que precede o esporro”.
Seus olhos não querem ver. Mas, minha santa dos canaviais, teus guardiães insuflam a raiva que vem dos peixes e o assombro das imagens sem perna farão despertar a serpente adormecida nos porões do engenho.
Auditem logo esse interesse, rebatam o apoio dos Judas daqui e reclamem em seus comícios. Pois se não, o meu protesto ficará para depois das eleições. E assim poderei votar em minha dilapidação, meu dilaceramento.
Estou velho de mais para me insurgir? Não. Cego a ponto de não enxergar? Talvez. Não sei quem me defenderá da fome dos lobos estrangeiros. Sou uma promessa da providência e da fé que vaga nas romarias canônicas dos antigos destinos colonizados?
Ó Pindaré prometido! engrandecido nós, os teus filhos, te amamos!

* Escrito em 2010, no contexto das eleições. Analisa os interesses e propostas eleitorais dos candidatos da região do Vale do Pindaré e a polêmica de sua divisão territorial dos limites do município de Pindaré-Mirim.